29 agosto 2010

Cântico Negro



Cântico negro

José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

22 agosto 2010

Quem é guardião de quem ?



Esta é uma história com um final feliz, ainda que não tenha chegado ao fim. Quem sabe seja só o início. 
Tudo começou dias atrás com a gente ouvindo um latido, próximo à nossa casa, vindo da parte interna do sítio. Durante uns dois ou três dias o latido dava sinais de que o animal permanecia por perto.
De vez em quando aparece um cão-andarilho por aqui, perdido no mato, vindo do nada. E, claro, sempre temos que tocar o bicho pra fora. Afinal nossa população de pets - mesmo tendo sido maior no passado - é de causar espanto a qualquer um.
E eis que, passados uns dois dias ouvindo o latido, ao sair de carro com meu filho, lá estava ele, numa outra entrada do sítio, preso do lado de dentro da propriedade: um cachorro de porte grande, com cara de assustado. 
Fiz meia volta com carro e retornei com uma tigela de ração e potes vazios acompanhados de uma garrafa pet de 2 litros com água.
O pobre cão estava magro, desesperado e tratava-se claramente de um ancião. 
Assim conhecemos o Boris - nome que passamos a chamá-lo, conforme reabastecíamos com ração e água diariamente. 
O cão decidiu ficar do lado externo do sítio onde há uma guarita. Podia sair por aí, perdido, mas preferiu aguardar que o destino pudesse lhe reservar alguma sorte.
Notamos que outras pessoas também deixavam ração, ao perceberem que se tratava de um caso de abandono. Ficou velho, já não servia pra mais nada, só despesa. Este é muitas vezes o "troco" com que muitos destes inegáveis amigos na lealdade são contemplados após anos de serviços prestados tendo o amor como fio condutor. 
Era nítido que só comida não seria suficiente. Era preciso algo mais: carinho.
Trazê-lo pra casa, nem pensar.
E a solução veio do acaso. Um casal, com um filho pequeno, passara a morar na casa que seria de caseiro do sítio - na verdade numa espécie de comodato. .
Arrisquei um acordo: nós faríamos a manutenção de alimentação em troca de que ele fosse cuidado por eles. 
Eles toparam e isto permitiu que Boris ganhasse uma nova família, rodeado de carinho. O coitadinho só falta falar, tal é a sua gratidão. 
E ai de algum estranho ou cão que se aproxime da entrada da casa, para que o velho invocado solte seu latido grosso, porém já não tão forte, já com passar do tempo.

05 agosto 2010

Carta Aberta de Antonio Carlos Assumpção a João Sayad


 
TV CULTURA

Eu sou Antonio Carlos Assumpção Silva. Aqueles que me conhecem sabem que meu apelido é Tonhão.


Trabalhei na TV Cultura de 1970 a 1990. Entrei como estagiário ainda terminando a Escola de Comunicações e Arte da USP e quando saí  havia sido Diretor dos Departamentos de Educação, Variedades, Programas Infantis e Teleatro da Fundação Padre Anchieta. Nesses anos todos passei por todos os cargos inerentes ao meu trabalho: assistente de produção, produtor, autor, roteirista, diretor, diretor de programas especiais, diretor geral e outros mais.


Faço esse preâmbulo para explicar que aprendi a amar a TV Cultura com todos os seus defeitos e idiossincrasias e posso falar dela como quem a conhece. Senão políticamente, mas como técnico e artista que sou e que pertenci com orgulho a seu quadro de funcionários.


Pois bem, fui surpreendido como milhares de outros que leram as últimas reportagens da R 7 e posteriormente da entrevista do Presidente João Sayad ao Estadão.


Sinto-me na obrigação de tentar entender a visão deste senhor apesar da dificuldade e da distância.


Acredito sim que a tv Cultura tenha se tornado deficitária e ineficiente (basta ver parte de sua programação), mas como é que este senhor não percebe que esta mesma TV vem sendo administrada e sucateada por pessoas ligadas ao governo do estado desde a administração Mario Covas nestes últimos 16 anos (se não me engano) e dominada por grupos, no mínimo inescrupulosos (visando projeção pessoal e lucros obscuros) enquando eram promovidas degolas e substituição de bons profissionais por pessoas, no mínimo incompetentes.


Abro aqui um hiato para salvaguardar a competência de profissionais que lá ainda estão e defendem o pouco de criatividade que ainda existe (Provocações,Viola minha Viola, Senhor Brasil e Cocoricó).


Mas  é muito pouco para uma TV Cultura que sempre foi o exemplo e celeiro das  televisões comerciais de todo o país criando e treinando profissionais em todas as áreas da tv; experimentando programas e tendencias que depois eram consagrados nas outras tvs. Enfim, uma televisão de vanguarda, experimental e inovadora. Nunca visando a quantidade de espectadores, mas a sua qualidade e capacidade de modificar opiniões e comportamentos.


Muito bem, se diz hoje que é necessário muito dinheiro e que a TV é deficitária.


Ocorre que a TV Cultura, sempre foi pobre. Nos tempos em que lá estávamos brincava-se muito que era uma TV de “papel, cola e tesoura”, pois quase não tínhamos tecnologia e os equipamentos sempre foram velhos e defasados (com raras exceções).


Mas tínhamos o principal: Idéias e alguma liberdade para experimentar e ousar.


Acredito que isso  hoje falte e em grande parte a culpa seja realmente das gestões desastrosas que se acumulam desde a administração excelente do Sr Roberto Muylaert. (Posso falar isso com toda isenção, pois foi nesta administração que me retirei da tv, por incompatibilidade de pensamentos, mas me orgulho por dela ter participado).


Enfim, tenho medo quando ouço “degola”, demissões, redução do quadro (já ouvi isso várias vezes, tem cheiro de “vou tirar os seus para por os meus”) e agora a novidade pior: Vender o patrimônio.


Como!? – Esse é um legado do povo paulistano!  Não é do PSDB nem do governador de plantão e muito menos de um presidente eleito por interesses políticos e absolutamente de passagem.


Como é isso?! Temos que discutir muito essa situação. Não é possivel alguém dizer que a “TV estaria melhor em um andar de um prédio qualquer”. Se assim fosse, as Redes Comerciais usariam esse mesmo critério para seus quadros, acabando com seus enormes e vastos estúdios e cidades cenográficas e outros que tais.


 Que o Conselho Curador, que antigamente era realmente representativo tome providências para acabar com essa situação ridícula. Que defenda o povo de São Paulo e do Brasil.


Mudanças houveram, mas não são as produtoras independentes que terão toda a competência para inovar e experimentar que uma tv de ponta tem.


A Tv Cultura foi criada com essa função desde os tempos de Abreu Sodré. Sofreu e lutou para  conseguir encontrar um nicho entre as outras. Nomes com Walter George Durst, Tulio de Lemos, Fernando Pacheco Jordão, Antonio Abujamra, Antunes Filho, Adhemar Guerra, Alvaro de Moya, Jose Castellar, Heloísa Castellar,Eduardo Moreira  e tantos outros que por lá passaram deixaram suas marcas ensinando os jovens profissionais e criar e produzir com excelencia. Sempre foi uma TV escola para todos nós que lá estivemos e outros que vieram depois de nós.


Meu Deus, é hora de renovar os quadros (qualitativamente), criar novos programas, baratos e rentáveis, novas idéias enfim, fazer o que sempre fizemos: lutar, e não entregar os pontos. Vender o patrimônio e apagar a luz.


Por favor Senhor Sayad, pense grande.





Posso e devo estar sendo passional e romântico, mas acredito que mesmo com uma visão racional a TV Cultura tem solução que não sua morte.
Obrigado,
 São Paulo, 5 de agosto de 2010
Antonio Carlos Assumpção Silva - diretor